Allen Ginsberg para Jack Kerouac
depois de 19 de outubro de 1984
Quarta
Caro Jack:
As cartas e a fala enquanto falamos são vagas, mas só porque somos vagos. Essa coisa do mistério amargo da vida não existe, mas você diz que há um mistério belo. É um mistério, e isso é tudo. “Nenhum de nós entendo o que está fazendo”, mas fazemos coisas belas mesmo assim. O algo mais que estamos fazendo é sempre reconhecido de um jeito ou de outro. Quero saber o que estou fazendo/quero reconhecer isto. Isto pode ser reconhecido. E é isso que a psicanálise, a religião, a poesia, tudo isso, nos ensina, que pode ser reconhecido pela sua própria natureza, o pecado é não reconhecer Cézanne é o começo do reconhecimento para mim, mas não é a coisa verdadeira, apenas um substituto no sentido intelectual. Todo o fascínio e a beleza das pessoas se encontrando e ecoando vem de nosso instinto inato que não chega à consciência, que estamos aqui, que algo específico está ali e que ao redor disso argumentamos nosso amor. É uma coisa aceitá-lo como tal e vagar por aí como numa terra de sonhos preso com a maravilha incompreensível do mistério da beleza. Mas se alguém nos oferece em troca um choque direto de comunicação – não misterioso, mas direto, alguma pessoas conseguem isso – seria assustador para mim e para você porque perturbaria o sonho todo da beleza ambiguamente pretendida.
Jack Kerouac& Allen Ginsberg – As Cartas. Tradução de Eduardo Pinheiro de Souza. p. 47. L&PM Pockets